Como a China turbinou as bilheterias dos heróis da Marvel e DC – e o que isso significa para o cinema? [Parte 1]

 

Que os super-heróis vivem hoje em dia o ápice de sua popularidade todo mundo já sabe. Nos EUA, no Brasil e no mundo inteiro as aventuras cinematográficas estreladas pelos heróis da Marvel e da DC tem arrecadado valores absurdos nas bilheterias. Quer sejam estrelados por figuras icônicas como o Homem-Aranha, até então conhecidas apenas pelos leitores mais fiéis dos quadrinhos como a Capitã Marvel ou mesmo por personagens que antes serviam de motivo de piada como o Aquaman, podemos dizer que filmes de heróis nos dias de hoje quase sozinhos mantém a indústria de cinema americana viva (junto com animações, terror, musicais, novas versões de clássicos da Disney e Keanu Reeves vingando a morte de seu cachorro). 

 

No entanto, há um certo público que, apesar de sempre ter apreciado super-heróis, nos últimos 10 meses parecem ter adquirido um gosto ainda maior pelo gênero. Trata-se do hoje importantíssimo público chinês. A China atualmente é o segundo maior mercado consumidor de filmes do planeta, e muito em breve se tornarão os primeiros, conforme a bilheteria e o número de ingressos vendidos no país oriental ultrapassar os dos EUA/Canadá. Em 2017, por exemplo, enquanto a bilheteria total do ano nos EUA foi de US$ 11.1 bilhões, com uma queda de 3% em relação ao ano anterior, na China ela foi de US$ 8.6 bilhões, US$ 2 bilhões a mais do que em 2016. Mais de 1.45 bilhão de chineses visitaram o cinema ao menos uma vez em 2017, um aumento de 15% em relação ao ano anterior. Além disso, estima-se que 10 novas salas de cinema sejam construídas no país todos os dias, e a China passou de 12.407 telas em 2012 para 50.776 no final de 2017, e este número deve subir para 80.377 em 2021. 

 

Ou seja, mesmo com a China e os EUA atualmente travando uma aguerrida guerra comercial, é mais importante do que nunca para que os estúdios hollywoodianos alcancem boas bilheterias entre os chineses.

 

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Claro, esta não é exatamente uma disputa fácil, pois os chineses também tem sua própria e muito lucrativa indústria cinematográfica. Seu maior sucesso é o filme de ação Wolf Warrior 2, de 2017, que faturou ridículos US$ 854,2 milhões só na China – um faturamento maior que o obtido por Thor: Ragnarok e Mulher-Maravilha em todo o planeta (!) naquele mesmo ano. Já em 2019 a China lançou o que deve ser o primeiro grande blockbuster de ficção científica não produzido por Hollywood da história, o épico interplanetário Terra à Deriva, que obteve um colossal faturamento de US$ 690 milhões no país asiático. Esta curiosa ficção científica, que envolve turbinas sendo colocadas na Terra para levá-la numa jornada de 2500 anos rumo a um novo sistema solar, foi um sucesso entre os chineses, embora críticos ocidentais não pareçam ter embarcado muito na proposta do longa. Em todo caso, tal longa está disponível na Netflix, caso você queira conferir por si próprio.

 

Mas mesmo enfrentando disputas com blockbusters locais, os filmes americanos ainda obtiam rendas consideráveis na China, que em muitos casos impediu um fracasso completo. Os chineses desenvolveram um gosto, digamos, um tanto curioso para filmes de Hollywood, ao menos para nós brasileiros, que (na maior parte do tempo) acompanhamos o gosto dos americanos. Longas de super-heróis, apesar de bem sucedidos, não eram exatamente o gênero preferido dos chineses – ao menos, até cerca de 10 meses atrás

 

Como ocorreu essa mudança? Quais são seus impactos para a indústria de cinema? E como ficam os outros filmes nessa história? É o que você vai descobrir nesta matéria especial em duas partes do seu Legado da Marvel!

 

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Os chineses e o cinema

 

A primeira exibição de um filme na China, até onde se sabe, ocorreu em 11 de agosto de 1896, em Xangai. O primeiro filme chinês, porém, foi produzido apenas em 1905. Nos primeiros anos, os chineses produziram comédias e dramas, fortemente influenciados pelo cinema americano. Em 1931, os chineses lançaram seu primeiro filme sonoro, Sing-Song Girl Red Peony, com a ajuda da tecnologia da empresa francesa Pathé. 

 

Durante os anos 30, houve a primeira era de ouro do cinema chinês, na qual os longas retratavam temas como luta de classes, a vida de trabalhadores empobrecidos e as dificuldades dos pobres em cidades populosas, bem como a ameaça de agressores externos. Tal era de ouro, porém, acabou em 1937, quando tal ameaça realmente se concretizou na invasão japonesa do país, que levou ao fechamento de quase todas as produtoras e a fuga de vários cineastas.

 

O país enfrentou a guerra contra o Japão nos anos seguintes e depois sua própria guerra civil, que levou à revolução comunista chinesa, em 1949. O novo governo viu no cinema uma poderosa ferramenta de propaganda, e então proibiu filmes de Hollywood e de Hong Kong de serem exibidos no país. A maior parte dos longas produzidos nessa época serviam para divulgar os ideais comunistas chineses, e os cineastas do país foram enviados para a União Soviética para estudar seu estilo consolidado. E com a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, em 1966, o cinema do país ficou ainda mais restringido.

 

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Com a abertura econômica da China capitaneada por Deng Xiaoping no final da década de 1970, novos cineastas nativos começaram a surgir e a se aproveitar de uma maior liberdade para fazer filmes elogiados por críticos ocidentais. Diretores como Tian Zhuangzhuang, Chen Kaige, Zhang Junzhao e Zhang Yimou obtiveram considerável aclamação em seu país e fora dele, através de longas como Lanternas Vermelhas, o vencedor da Palma de Ouro em Cannes de 1993 Adeus, Minha Concubina e filmes de artes marciais, como Herói e O Clã das Adagas Voadoras.

 

Entretanto, apesar da lenta abertura da China, filmes hollywoodianos ainda não tinham a mesma popularidade no país que possuem hoje em dia. Longas como Homem-Aranha 3 (US$ 19 milhões), Transformers (US$ 37,2 milhões), O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (US$ 10,4 milhões) e, claro, Titanic (US$ 44 milhões) fizeram números até consideráveis para a época no país, mas que hoje ficam bem distantes das astronômicas bilheterias conquistadas por muitos blockbusters americanos na China.

 

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Abertura aos americanos

 

Lançado em janeiro de 2010 na China, Avatar faturou nada menos que US$ 202 milhões por lá. Mesmo com tal longa alcançando desempenhos absurdos em praticamente todo o globo, a China, com muito menos cinemas do que hoje, foi o segundo maior mercado do filme, atrás apenas dos EUA. Isso certamente chamou a atenção de muitos distribuidores hollywoodianos, ansiosos pela crescente bilheteria chinesa.

 

Com o número de telas crescendo com estonteante velocidade na China, havia necessidade de longas que chamassem o público para justificar a construção dos cinemas. Com isso, produtores hollywoodianos começaram a apelar cada vez mais para o que eles achavam que seria o gosto dos chineses, incluindo colocando astros locais em papéis de destaque.

 

O primeiro desses filmes que apelavam especificamente para a China veio da própria Marvel Studios: Homem de Ferro 3 teve uma (bizarra) cena exibida apenas no país, com participação das estrelas locais Wang Xueqi e Fan Bingbing. Apesar da qualidade discutível da cena, o resultado foi estrondoso: o longa faturou nada menos que US$ 121,2 milhões só na China e foi a segunda maior bilheteria do ano por lá. Em 2014, aproveitando a popularidade da franquia Transformers no país, a Paramount resolveu apelar ainda mais para os chineses com o novo capítulo da franquia, A Era da Extinção, que trazia Bingbing num papel de destaque e tinha todo o seu terceiro ato ambientado em Hong Kong (e com o exército chinês ajudando os Autobots na batalha contra os malvados Decepticons). A aposta deu certo, e o filme de Michael Bay faturou nada menos que US$ 320 milhões no país, mais do que os US$ 245 milhões arrecadados nos EUA.

 

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Eventualmente, até mesmo os chineses se cansaram de tanta bajulação gratuita, vista pelo público como uma forma particularmente patética de chamar a atenção dos cinéfilos do país. Ainda assim, o apetite dos orientais por blockbusters hollywoodianos não diminuiu, pelo contrário. De 2013 até meados de 2018, uma grande variedade de longas americanos fizeram fortuna no país, quer tenham sido bem sucedidos nos EUA e no restante do mundo ou não.

 

O maior exemplo disso é a franquia Velozes & Furiosos. Curiosamente, os cinco primeiros filmes da “saga” nem chegaram a ser exibidos nos cinemas do país, porém o sexto faturou US$ 66,4 milhões por lá, e o sétimo, bem, este virou febre entre os chineses e arrecadou nada menos que US$ 390 milhões na China. O oitavo continuou essa tendência, faturando US$ 392,8 milhões no país e se tornando o maior filme americano na China até a chegada de um certo grupo de super-heróis (mais sobre isso a seguir). Tanto Velozes & Furiosos 7 quanto sua sequência tiveram na China seu maior território, faturando mais por lá do que nos EUA.

 

Os cinéfilos chineses também compareceram em peso para filmes sobre monstros gigantes (a proximidade com o Japão deve ter ajudado na disseminação da cultura kaiju pelo país). Tanto Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros (que arrecadou US$ 228,7 milhões por lá) quanto sua continuação (que foi ainda melhor e faturou US$ 261,2 milhões) foram sucessos absurdos no país, assim como Kong: A Ilha da Caveira (US$ 168,1 milhões), Rampage: Destruição Total (US$ 156,3 milhões), Megatubarão (US$ 153 milhões), Círculo de Fogo (US$ 111 milhões) e sua sequência (US$ 99,4 milhões).

 

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Chineses são notórios gamers e por isso muitos filmes baseados em jogos encontraram polpudas bilheterias no país. Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos (US$ 213,5 milhões) e Resident Evil 6: O Capítulo Final (US$ 159,5 milhões) foram salvos do fiasco total por terem encontrado na China um sucesso que não obtiveram em outros países, inclusive nos EUA. Já Jogador Nº 1 conquistou os chineses ao retratar uma realidade virtual na qual os usuários se envolvem em diversos jogos, e obteve no país oriental sua maior bilheteria. O filme faturou US$ 218,4 milhões na China contra US$ 137,6 milhões nos EUA, apesar de ter sido dirigido por Steven Spielberg, o cineasta americano mais icônico das últimas décadas (cujos clássicos são praticamente desconhecidos pelos chineses) e ter diversas referências à cultura americana dos anos 1980.

 

Os chineses também apreciam uma ficção científica hollywoodiana, tendo dado boas bilheterias a filmes como Interestelar (US$ 121,9 milhões), O Exterminador do Futuro: Gênesis (US$ 113,1 milhões) e os dois últimos longas da franquia Planeta dos Macacos estrelada por Andy Serkis (US$ 107,3 milhões para o segundo e US$ 112,1 milhões para o terceiro). E, claro, o mercado apaixonado por Velozes & Furiosos também não poderia deixar de prestigiar outros filmes de ação dos EUA, como os dois últimos filmes da franquia Missão: Impossível (US$ 135,6 milhões para Nação Secreta e incríveis US$ 181,1 milhões para Efeito Fallout). Enquanto isso, xXx: Reativado (gigantescos US$ 164 milhões), Arranha-Céu: Coragem Sem Limite (US$ 98,4 milhões) e o citado Megatubarão se aproveitaram do fato de seus protagonistas (respectivamente, Vin Diesel, Dwayne Johnson e Jason Statham) também participarem da franquia dos carros velozes para alcançar bilheterias chinesas superiores às americanas.

 

De vez em quando, algum filme de fantasia aproveitava para surpreender na China, como foi o caso do quinto longa da franquia Piratas do Caribe, intitulado A Vingança de Salazar. Seus predecessores, No Fim do Mundo e Navegando em Águas Misteriosas, haviam alcançado totais decentes para a época que foram lançados (respectivamente US$ 17 milhões e US$ 70 milhões), porém A Vingança de Salazar levou essa suposta popularidade de Jack Sparrow entre os chineses para um novo nível, e arrecadou inacreditáveis US$ 172,2 milhões por lá. Outra franquia que viu sua fama no país crescer a cada filme foi O Hobbit: o primeiro longa da trilogia faturou US$ 49,7 milhões por lá, o segundo chegou a US$ 74,7 milhões e o terceiro alcançou imensos US$ 121,7 milhões. 

 

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Finalmente, animações americanas não conseguem na China o mesmo sucesso que no restante do globo (os chineses, afinal, não cresceram com os clássicos da Pixar e da Disney como eu e você). Por outro lado, alguns desenhos animados hollywoodianos encontraram surpreendente aceitação entre os chineses, como foi o caso de Zootopia: Essa Cidade é o Bicho (US$ 235,5 milhões), Meu Malvado Favorito 3 (US$ 158,1 milhões) e o mais incrível de todos, Viva: A Vida é uma Festa (nada menos que US$ 189,2 milhões). O premiado longa da Pixar, focado na cultura mexicana, emocionou os chineses com sua abordagem sobre o tema da família.

 

Mas e quanto aos super-heróis? Bem, o gênero, embora bem sucedido, estava longe de ser tão dominante na China em relação a outros longas. Vingadores: Era de Ultron alcançou excelentes US$ 240,1 milhões no país, quase o triplo da bilheteria de seu predecessor de 2012, enquanto Capitão América: Guerra Civil encerrou sua carreira com US$ 180,7 milhões. Mesmo assim, a maior parte dos filmes de heróis lançados entre 2013 e 2018 alcançaram bilheterias que ficam dentro de um teto de US$ 90 milhões a US$ 120 milhões.

 

Muitos filmes estrelados por heróis solo do MCU ficaram em um patamar similar, como Homem-Aranha: De Volta ao Lar (US$ 116,2 milhões), Capitão América 2: O Soldado Invernal (US$ 115,6 milhões), Thor: Ragnarok (US$ 112,2 milhões), Doutor Estranho (US$ 109,1 milhões), Homem Formiga (US$ 105,3 milhões) e Guardiões da Galáxia Vol. 2 (US$ 100,6 milhões). Até mesmo Pantera Negra, que arrecadou horrores nos EUA, faturou apenas US$ 105 milhões na China – quem diria que o rei de Wakanda teria uma bilheteria chinesa menor que a do Homem Formiga?

 

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Nem mesmo filmes de fora da Marvel Studios conseguiam quebrar esse teto. Alguns dos últimos longas dos X-Men se saíram muito bem na China, com Dias de um Futuro Esquecido arrecadando ótimos para 2014 US$ 116,4 milhões e Apocalipse chegando a US$ 120,7 milhões. Já Logan precisou remover algumas cenas de violência para passar pelos censores, porém os cortes valeram a pena para a Fox, com o Wolverine faturando US$ 106,2 milhões por lá. Já O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro encerrou sua carreira com US$ 94,4 milhões na China, um resultado superior ao de Guardiões da Galáxia (US$ 86,3 milhões), lançado no mesmo ano.

 

Na DC as coisas não eram muito melhores. Mulher-Maravilha foi um grande sucesso nos EUA, porém faturou apenas US$ 90,4 milhões na China, enquanto Batman vs Superman: A Origem da Justiça chegou a US$ 95,7 milhões no país. Esquadrão Suicida nem sequer chegou a ser exibido no país, porém Liga da Justiça faturou bons US$ 106 milhões por lá.

 

Enfim, havia um teto para as bilheterias dos super-heróis na China, o qual só era ultrapassado pelos maiores eventos do tipo, como foi o caso de Era de Ultron e Guerra Civil. Ainda assim, parecia que os chineses não seriam tão absorvidos pela febre dos super-heróis quanto no resto do mundo.

 

 

Até que, em 2018, isso começou a mudar. Saiba como na segunda parte de nossa matéria especial!

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Publicitário, formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Trabalho com Marketing Digital desde 2015. Apaixonado por bilheterias de cinemas, estudo o mercado cinematográfico brasileiro e estrangeiro já há vários anos, e desde 2017 sirvo como o principal analista de bilheterias para o Legado da Marvel.
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